segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

O CÂNDIDO SORRISO DE GIOCONDA.





92-Manuel Bastos
Fur.Mil.Exército
Moçambique



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No dia 21.01.08 recebi um Email do nosso Companheiro Nuno (Poeta) em que me anunciava e aconselhava a visitar o Blog "CAMCIBO" e dizendo o seguinte:






"Amigo Barata,tomo a liberdade de te dar a conhecer um blog que tem estórias de guerra,escritas por um camarada,MCBASTOS,Deficiente das Forças Armadas,algumas já publicadas no jornal ELO da ADFA e que tenho a certeza que vai cativar a atenção dos visitantes do NOSSO blog. cacimbo,blogspot.com , e sem ter a permissão do autor,mas acreditando que não me vai levar a mal,e porque a estória vai recordar-nos uma enfermeira que connosco privou,transcrevo a seguir,essa mesma estória,esperando que sirva para aguçar o apetite aos teus visitantes,a lerem e divulgarem esse blog tão finamente recheado de relatos que nos transportam a uma época de sofrimento para milhares de jovens de então."






Pois muito bem,obviamente que temos que saber respeitar a privacidade de cada um e,embora eu seja conhecedor desse blog,pois até está anunciado neste como local a visitar,nunca publicaria nada nele inserido sem solicitar a devida autorização ao nosso Companheiro Manuel Bastos.Assim, enviei-lhe um Email a solicitar a devida autorização para a publicação do seu EXCELENTE artigo a qual me foi concedida de imediato e que passo a transcrever:






"O Cândido Sorriso da Gioconda"

Sobre mim um rosto de mulher mansamente sorridente olha-me com ar profissional,como se olha uma peça de lombo de porco num talho,para avaliar o seu estado de frescura.Eu estou estranhamente calmo também,deve ser do que o enfermeiro Costa me mandou prá veia.Ela,que veste uma t-shirt branca em vez da parte de cima da farda,sente-me o pulso e verifica a válvula do saco de soro,mais como se seguisse um ritual do que se acudisse a uma necessidade.
Haverei de vê-la ,um dia numa bicha para o cinema em Lisboa,pôr um marinheiro KO,que lhe apalpou o rabo.Chutou os sapatos de salto alto,um para cada lado,arregaçou a saia travada até cima,rodopiando sobre si mesma e partiu-lhe a cana do nariz com um calcanhar.E tudo com aquele ar mansamente sorridente.Agora,olhando-a a repartir a sua serena atenção pelo meu pulso,pelo saco do soro,e pelo que resta da minha perna esquerda,entrapada numa ligadura mal amanhada,a sair por entre as tiras do camuflado,que parecem ter sido rasgadas criteriosamente para terem a mesma largura;agora,ali,ninguém diria que seria capaz de partir o nariz a um marujo.
Equilibra-se fazendo um bailado acrobático,à medida que o helicóptero progride,ora adornando para um lado e para o outro,ora dando solavancos que fazem estalar a maca debaixo de mim.O helicóptero tem as portas abertas e ela não parece temer ser lançada borda fora.Dança dando pequenos paços,flectindo as pernas,passando uma,ás vezes,por cima de mim,para o outro lado da maca sem quase nunca precisar de se apoiar nas mãos,entretidas na sua função de auscultação,palpação e regulação;às vezes dando pequenos piparotes com o indicador no tubo do soro,às vezes aliviando o garrote que me aperta a coxa,ás vezes pousando a palma suavemente sobre a minha testa.
Baixa-se para me gritar ao ouvido,tentando sobrepor-se à percussão do rotor e ao silvo da turbina do helicóptero: -Tudo bem? - Tenho frio! - É normal! E o cheiro a suor de mulher ficou pouco a pairar à minha volta.
O piloto bate no separador que divide o seu cubículo do resto do habitáculo e fecha violentamente a mão direita sobre o pulso da mão esquerda em sinal de ela dever segurar-se.
Só agora percebo os pequenos estalidos na fuselagem do Alouett III - estamos a ser alvejados.O piloto faz o aparelho adornar completamente,mergulhando para o lado esquerdo e eu vejo a selva ao fundo debaixo de mim.Uma bota apenas,como um ponto de mira,a meio da porta aberta,a apontar o perigo lá em baixo e o calmo sorriso da enfermeira,agora deitada a meu lado,no chão do habitáculo,com um braço estendido para o frasco do soro,passando-me por cima e o cheiro a mulher que traz um pouco de humanidade ao que resta de mim.Pode ter sido do que o Costa me injectou na veia,mas não tenho medo nem pressa.Nem os impactos dos projécteis das Kalashs no helicóptero me assustam.Aquele sorriso impávido e profissional da enfermeira e a sua atenção mais ao acto médico do que a mim,inspira-me uma segurança quase total.
Se me dissessem agora que aquela enfermeira haveria um dia de ser decapitada pela hélice de uma DO,durante uma evacuação,eu converter-me-ia a uma religião qualquer,só para pedir a deus que a poupasse.
Aquele sorriso quase esfíngico,quase angélico,quase humano,quase feminino;a um palmo do meu rosto,a encobrir o medo-porque de certo ela se sente,modestamente,com menos direito a ele do que eu,dedicada à sua missão de salvar,a única missão nobre que há numa guerra;aquele sorriso profissional, que inspirava confiança sem violar os limites pudicos da intimidade;aquele sorriso camarada sem o humilhante paternalismo da piedade,fez resnacer em mim o amor-próprio e gerar um profundo sentimento de gratidão,Por isso,quando recebi a notícia da sua morte tive a cobardia dos ateus perante a impotência,face à finitude absurda da vida,e dei por mim a pedir a deus que fosse mentira,que não passasse de uma das muitas mentiras da guerra.
Lentamente,com o tempo,a sua imagem desvaneceu-se,o cheiro bom das suas feromonas esfumou-se e o seu sorriso que ministrava como um lenitivo,apenas na dose certa,feneceu devagar na minha memória.
Mas quando à minha frente,largando sangue,como se uma fita vermelha lhe saísse pelo nariz,um marujo com ar de rufia de levanta a medo do chão;quando olho para o vulto feminino descalço à frente dele,de saia arregaçada até às calcinhas com aquele ar de Gioconda,sereno,quase terno,de quem se sente na maternal obrigação de cuidar dos desvalidos,a ponto de me parecer ouvi-la dizer: "Tudo bem?...É normal!",não contive as duas grassa gotas de água que inundaram os meus olhos e toda a estrutura racional que sustenta as minhas convicções de ateu,abalaram de alto a baixo.
Acho que foi ai que se operou em mim a mais gigantesca transformação metafisica de toda a minha vida.
Entre acreditar que deus não existe e não acreditar que deus existe há mais que um simples trocadilho,há a memória desse cândido sorriso de Gioconda a lembrar-me quão insignificantes somos nós perante os grandes conflitos da existência.
A minha falta de fé deixou de ter a arrogância dos que apenas possuem certezas,sejam crentes ou ateus,para passar a ser a simples e modesta assunção da incapacidade de conter dentro de mim,este ser exíguo e perecível,o conceito absoluto e sempiterno de deus.
Estarei condenado a ser um limitado descrente,onde não cabe a transcendência divina,mas não nego que todo o meu ser se deslumbra com a sua beleza,enquanto entidade poética

Manuel Bastos