sábado, 31 de janeiro de 2009

753 OU NÃO FOSSE ESCRITO POR TI,MIGUEL!

Miguel Pessoa
Ten. Pilav. (Cor.Pilav.Reformado) Guiné
1º Piloto da FAP a ser atingido pelo míssil SAM-7 STRELLA


Lisboa



Em Novembro de 2008,em plena Serra do Caramulo,por ocasião de uma visita com que me quiseram agraciar,O Miguel e a Giselda.







1973 - O Ten.Pilav.Miguel Pessoa,saindo a porta do GO 1201,para mais uma missão no espaço aéreo da Guiné,abordo de um Fiat-G91.


Amigo Victor.

A publicação do livro do Cor Coutinho e Lima sobre a retirada do Guileje e os subsequentes comentários que sobre esta matéria têm inundado o blogue do Luis Graça conseguiram de certa moda tirar-me da inércia que tenho mantido sobre um assunto que tenho considerado demasiado íntimo e difícil de partilhar. E desengane-se quem pensa que isso vai mudar...
Porque, como muitos dos frequentadores deste blogue, dedicamos um carinho especial a um momento difícil das nossas vidas nessa longínqua Guiné, gostaria de partilhar algumas imagens do Guileje que tive a oportunidade de fixar no ano de 1995, quando ali passei uma semana, envolvido na gravação de um documentário sobre o Guileje, realizado por José Manuel Saraiva para a RTP.

1995 - Convidado pela RTP,regressou à Guiné,mais propriamente ao Guileje.Aqui pousa junto ao que ainda restava da porta de armas do aquartelamento.



1995 - Na parada do aquartelamento,junto ao monumento onde,desfraldada ao vento,a bandeira Portuguesa sinalizava a nossa presença,onde ainda se podia ler:



"Vencer sem perigo é triunfar sem gloria.Homenagem da C.CAÇ.3325 aos seus mortos e feridos e aos portugueses de todas as cores,raças e credos que tombaram em defesa da pátria"


Para começar, apresento as minhas credenciais:
Miguel Pessoa, à data Tenente-Piloto-Aviador do Quadro Permanente da Força Aérea.
Cumpri a comissão na Guiné no período de 18NOV72 a 14AGO74, com um intervalo passado em Lisboa (entre 7ABR73 e início de AGO73) para recuperar das mazelas sofridas quando da minha ejecção de Fiat G91, depois de atingido por um SAM-7 Strella durante um apoio de fogo ao aquartelamento do Guileje.
À chegada ao Teatro de Operações estava apenas qualificado para voar o Fiat G-91 mas rapidamente o saudoso Ten Cor Almeida Brito* ministrou-me um curso intensivo de DO-27 que me habilitou a operar este avião por todas as pistas ali existentes (64, se bem me lembro, que as contei na minha carta de voo).
Assim, até Abril de 1973 dividi a minha actividade de voo entre o Fiat G-91 (1/3 das horas) e o Do-27 (os restantes 2/3).A partir daí e até ao fim da comissão a minha actividade de voo foi essencialmente feita no Fiat G-91.
Tem piada que por esta hora já vou adiantado na conversa mas ainda não te mostrei as fotografias... Também não me parece que esteja a falar para os leitores do Blogue pois, como inicialmente referi, não é matéria sobre a qual goste muito de falar.
Assim, parece que te escolhi para interlocutor (ou ouvinte). Ou, pensando melhor, parece-me que afinal estou a falar para mim, que isto de guardar cá dentro todas as emoções que sentimos naquele período é coisa que cansa, principalmente quando se trata de matéria politicamente incorrecta e a que muita gente torce o nariz.
À custa das fotografias já estou a alongar-me. Mas parece-me que vou continuar...
Pelas datas que acima refiro se pode dizer que não estou minimamente habilitado para falar sobre a retirada do Guileje, que no difícil período de Abril e Maio de 1973 estava eu a recuperar de uma perna partida e de uma compressão das vértebras (perdi 2cms de altura...), que isto de se trabalhar sentado também não é tão fácil como pode parecer.
Mas sobre o Guileje só posso dizer que a coisa já não estava boa em Março pois naquele dia (um domingo, 25) eu estava lá para fazer um apoio de fogo ao aquartelamento, na sequência de um flagelamento do IN.Sobre as peripécias desse dia e do período até Abril de 1974 poderei eventualmente pronunciar-me no futuro, que não agora.
Apenas algumas palavras sobre comentários que tenho retirado de diversas intervenções no blogue, e que me parecem menos correctas.
Primeiro que tudo, evitarei fazer juízos de valor sobre atitudes/comportamentos de outros intervenientes naquele conflito, de um lado e do outro; por isso, também não me caiem bem os bota-abaixo sobre a Força Aérea que tenho lido, da parte de pessoas que não estarão habilitadas para o fazer, por não disporem de todos os dados do problema.
Acredito, sim, que na maior parte das vezes todos nós (dos 3 ramos) fizemos o melhor que podíamos, tendo em conta as nossas limitações no número e qualidade dos meios à disposição e o grau de motivação que nos animava (o que variava de sítio para sítio).
Dizer da inoperância da Força Aérea é fácil, principalmente quando somos nós os afectados - nas Urgências também sucede que somos deixados para mais tarde quando é necessário atender outros que estão piores que nós - e de certeza que nos vamos queixar.
Lembro-me de ter contabilizado à volta de 400 missões que efectuei na Guiné, mesmo com o interregno da minha recuperação no continente/metrópole/Portugal (escolher a palavra preferida, que essas discussões já começam a cansar-me).
E o mesmo se terá passado com os outros pilotos. Se isso foi deixar de voar, O.K.!
Reconheço que os apoios de fogo se tornaram mais difíceis de fazer dado o facto de se utilizarem novos parâmetros de voo - altitudes de entrada e de largada do armamento mais elevadas, o que diminuía a precisão (acrescida da nossa preocupação de não acertar nos nossos, ponto de honra de todos os pilotos), bem como o facto - que até agora suponho não ter sido referido - de a recuperação dos passes ter que ser feita com um aperto mínimo de 4 G's, mas que normalmente rondava os 6, 6,5G's (6 a 6,5 vezes a aceleração da gravidade).
Isto implicava factores de carga tão elevados no avião que obrigava o piloto a largar as bombas todas no mesmo passe, sob risco de ultrapassar os limites estruturais do Fiat, danificando-o (isto no melhor dos casos...).
Lembro-me de ter-se começado a verificar corrosão prematura nos rebites nas asas e na cauda, o que, aprofundado, se verificou ser resultante de longarinas rachadas, derivadas desses apertos constantes em todos os voos. E a verdade é que quando tive Strellas atrás de mim, não me lembro de olhar para o acelerómetro (g-meter) para ver quantos g's é que estava a meter no avião para me safar...
Isto limitava naturalmente a capacidade de ataques pontuais sucessivos, como os nossos camaradas no terreno pretenderiam.
Tal foi um pouco compensado com a utilização de armamento mais potente (as tais bombas de 750 lbs), o que, por si, justificava o uso de altitudes maiores de recuperação, para mantermos o avião fora do envelope das explosões (alcance dos estilhaços). E, logicamente, este material não poderia ser largado tão próximo das NT como anteriormente.
Acabado este desabafo, vamos então às fotografias...
É interessante que, olhando a fotografia do aquartelamento publicada no blogue, se realçam os campos abertos que permitiam às NT ver uma eventual aproximação do IN e a nós, pilotos, poder fazer uma boa aproximação ao aquartelamento e dispor de um espaço razoável para "pôr o estojo no chão". E, claro, tirá-lo de lá depois...
Não foi nada disso que pude observar no local quando lá voltei em 1995 - por terra, claro...
Aliás o monte de baga-baga que está numa das fotos, ao pé da porta d'armas, está no enfiamento da antiga pista (desaparecida).
O espaço acimentado que mostro noutra fotografia foi outrora a placa de helicópteros (usada por mim em 26MAR73, quando daí fui evacuado para Bissau).
Agora, na realidade, a placa está muito mais agradável pois dispõe de amplas sombras que lhe são fornecidas pela majestosa vegetação que ali prolifera pelo meio do cimento, com 10 ou 15 metros de altura (e 20 anos de crescimento selvagem, à data).
Finalmente, uma foto com monumentos que ficaram no aquartelamento e que dali não foram retirados pelo PAIGC, embora antes da nossa chegada estivessem cobertos pelo capim que ali existia - o qual foi limpo a mando da produção, para permitir a realização do documentário.
E por aqui fico, que a carta vai longa e já ultrapassou em muito o que eu tinha planeado.Sobre o seu conteúdo, farás dele uso do modo que achares mais conveniente, com a eventual omissão de partes do texto que consideres não ter interesse para publicação.Saudações a todos os ex-combatentes (**) da Guiné e às respectivas famílias, que tanto sofreram com a sua ausência.
Um abraço fraterno
Miguel Pessoa
*Comandante do GO (Grupo Operacional) 1201,1º Piloto da FAP falecido vitima do míssil SAM-7 STRELLA.
** Refiro-me a todos os que foram mobilizados para a Guiné,que isto de combater,cada um fá-lo da maneira que pode e sabe,e nas funções para que está mais habilitado.
VB: Olha Miguel,esta mensagem que nos transmites,só conheço uma pessoa com sensibilidade humana e intelectual que o pode fazer, ÉS TU!
Foi para mim demorada e emocional a leitura da mesma,pois obrigaste-me a recordar e aquele domingo de Março (25) em que guerra para mim tinha "parado" em virtude de, na companhia de diversos companheiros, termos tido autorização superior(o que era habitual)para irmos passar o dia a Bubaque,na praia e longe do TO.
O convívio foi excelente,o pior estava reservado para o regresso.
Recordo-me perfeitamente que viajava-mos na DO 27,não sei precisar quantos,divertidos pelo momento de alheamento ao nosso mundo habitual,eu viajava sentado na cadeira ao lado do piloto com os inter-comunicadores nos ouvidos,à velocidade cruzeiro (2750 RPM),quando, mais ou menos a meio do percurso ouço a torre de controle a chamar,diversas vezes,pelo o Pessoa( ou melhor,pelo indicativo que não recordo) e...nada! Lentamente,fui virando a minha cara para olhar a cara do companheiro piloto e verifiquei que o mesmo se passava dele para mim. Quando nos olhamos,olhos nos olhos,cada um de nós expressou ,através daqueles órgãos ,a dor que se abateu entre nós:-Perdemos o Pessoa! Perdemos um GRANDE COMPANHEIRO!
Transmitimos a noticia aos nossos companheiros,que ainda não sabiam visto só eu e o piloto virmos equipados com meios próprios para ouvir as comunicações,foi o final da festa,as lágrimas chegaram a deslizar para cima de alguns bigodes...
Felizmente tudo acabou em bem.
Sobre a maneira como muitas vezes somos (FAP) interpretados e classificados por muitas pessoas,já algumas vezes me manifestei neste espaço,cada um é livre de o fazer como melhor o entender,mas que o faça com justiça e dignidade!
Deixa-me dizer-te sobre este assunto e como tens acompanhado,chegam-nos diversas opiniões que têm sido publicadas,algumas delas retratam episódios que são verdadeiras obras literárias escritas com muita veracidade e rigor por companheiros cuja sua capacidade escrita é elevada.
Já algumas vezes nos temos dirigido a alguns companheiros de outras armas no sentido que nos esclarecerem de determinados episódios por si escritos em obras publicadas mas...vamos continuar à espera!
Por fim as nossas desculpas e só agora publicar-mos este artigo,mas o tempo assim o permitiu.