quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

795 MADINA DO BOÉ.




Miguel Pessoa
Ten.Pilav (Cor.Pilav.Ref.)
Lisboa


VB: Miguel quero desde já apresentar-te as minhas desculpas por só agora publicar este teu mail,mas,como sabes,a minha actividade profissional ocupa-me demasiado tempo e motiva estes contratempos na nossa "redacção"..
Mais uma vez nos proporcionas,como é teu apanágio,um interessante texto sobre a Guerra Colonial,desta vez em Madina de Boé,cujo a que analise que fazes é muito elucidativa.


Amigo Victor:
Surgiram recentemente uns comentários no Blogue editado pelo Luís Graça (Tabanca Grande) sobre a independência declarada pelo PAIGC em Madina do Boé, em Setembro de 1973,
e a (in)acção da FAP naquela data, relativamente a este acontecimento.
Era feito um convite aos pilotos da FAP para se pronunciarem e eu aceitei-o.
Porque considero que, para além do pessoal dos 3 Ramos envolvidos no conflito na Guiné (o leitor alvo daquele blogue), interessa aos "Zés" Especialistas (e outros leitores deste blogue) saber o que andava a fazer a sua Força Aérea, junto o texto que acabei de enviar ao Luís, pois é uma informação que "o nosso pessoal" certamente terá algum interesse em ler, embora não venha esclarecer muito o assunto...

Um abraço.

Miguel Pessoa


Texto enviado pelo Miguel ao Luis Graça:




"Caro Luís:
Tendo em atenção os comentários já surgidos ao post sobre a declaração da independência da Guiné-Bissau, apenas posso deixar-te aqui algumas ideias, pois a memória por vezes prega-nos partidas e a documentação existente é pouca ou nenhuma (o que é o meu caso pessoal).
Os registos na caderneta de voo, pelo menos naquela época, limitavam-se a referir o modelo e matrícula do avião, o tipo de missões efectuadas (ATIP, BOP, RFOT, etc.), o local de descolagem e aterragem e o tempo de voo efectuado nas diversas condições de tempo (contacto com o terreno, por instrumentos, etc).
No caso do Fiat, que por norma descolava e aterrava na BA12, apareceria na caderneta BA12-BA12-Local (nem aparece a localização dos objectivos).
Essa parte era objecto de um relatório de missão, em que se relatava o local, a acção desenvolvida, os resultados obtidos, os comentários achados adequados.
Ora, esses relatórios eram entregues nas Operações do GO1201, analisados nas Informações do Grupo Operacional e disseminados pelos pilotos naquilo que fosse importante reter.
Após o 25 de Abril, quando se começou a antever a retirada das nossas forças da Guiné, grande parte desse material foi destruída - daí a dificuldade que hoje temos em reconstruir um determinado acontecimento daquela época.
É por isso que, quando se fala de Madina do Boé, temos dificuldade em rever o nosso papel nessa data (digo "temos" porque estive a falar com o António Matos sobre este assunto).
De uma coisa tenho a certeza: Naquela data não se bombardeou a zona do antigo aquartelamento, o que me parece lógico, dadas as implicações que um eventual massacre entre a assistência poderia ter a nível internacional.
Naquele período fizeram-se reconhecimentos fotográficos na área, não se tendo detectado quaisquer movimentos (de guerrilheiros ou de população).
Tenho missões registadas na minha caderneta, em todos os dias à volta dessa data, mas não posso lembrar-me onde foram efectuadas - isso não ficou explicitado.
E o mesmo se passa com o António (que, a propósito, me autorizou a falar em nome dele).Recordo-me que próximo dessa data se preparou uma missão com forças terrestres (paraquedistas? operações especiais?) que foram colocadas na zona de Madina, não tendo referenciado ninguém no local (lembro-me que alguém teve a iniciativa de levar uma faiança das Caldas, que deixou no terreno com uma dedicatória para um importante guerrilheiro do PAIGC).
Na visita que fiz ao Guileje em 1995, em conversa com uma figura importante do PAIGC, foi-me confirmado que o local da cerimónia não tinha sido propriamente em Madina do Boé (por ser facilmente referenciado) mas mais a sul - fiquei com a ideia que esse "mais a sul" seria até para lá da fronteira.
Sem pretender botar sapiência cá para fora, limitei-me a tentar dar alguns esclarecimentos sobre este período importante da História da Guiné - da nossa História e da do lado oposto.
Se vires algum préstimo nestas linhas, publica-as.
Um abraço.
Miguel Pessoa"










PS - Depois de ter lido referências às cerca de 400 missões que tinha feito na Guiné como comprovativo do esforço que a Força Aérea fez na Guiné, antes e depois do Strela, fiquei com receio de ter exagerado no número, embora o tivesse na cabeça como referência.
Como sabes, por vezes uma declaração errada pode afectar a credibilidade de tudo o que dissemos antes (por mais verdadeiro que fosse).
Já descansei a alma, pois entretive-me a contar as missões efectuadas na minha caderneta de voo - 408 (o que está de acordo com a minha afirmação inicial), 409 se contarmos com o voo em que fui abatido (por pudor, não registei na caderneta os 20 ou 25 minutos que estive no ar no dia 25MAR73, pois parece-me que, para contar como missão, é de bom tom devolver o avião no fim do voo...).
O número peca por pequeno, embora eu tenha 4 meses de atenuantes.
De qualquer modo, o António Matos terá feito bastantes mais.


Comentário do Luis Graça:


Como tu próprio me disseste ao telefone, tu eras um simples tenente piloto aviador (tal como o António Matos). É bom lembrá-lo. Não tinhas que pensar globalmente, apenas localmente. Muitas das decisões, muitos dos actos e omissões, nossos e dos nosso IN de então, ainda estão (ou ficaram) no segredo dos deuses...
Isso não nos impede de partilhar aquilo que sabíamos ontem e que sabemos hoje, tentando uns com os outros juntar as mil e uma peças do puzzle...Muitos dirão que é um verdadeiro suplício de Sísifo, que nunca lá chegaremos, ao cume da montanha (neste caso, da verdade). Respondo: não estamos a competir com ninguém, a não ser contra o tempo (inexorável)... Estamos a lutar contra nós próprios e a ignorância dos outros, nossos contemporâneos, que nunca souberam onde ficaram o Cheche ou Madina do Boé.
Já que lá estivemos, na Guiné, entre 1963 e 1974, queremos conhecer e compreender o que lá andámos a fazer, o como e o porquê... É natural, é legítimo, é o único direito que não nos podem roubar ou negar...Há falhas na nossa memória individual, há grandes lacunas no conhecimento de muitos acontecimentos de que fomos actores ou testemunhas... Eu não estava lá em 24 de Setembro de 1973, mas já tinha pago o bilhete, sob a forma de trabalhos (es)forçados entre Maio de 1969 e Março de 1971, para ver o resto do filme...
Adorei, Miguel, essa do boneco das Caldas. Havia tugas com sentido de humor. Aliás, havia gajos com sentido de humor, de um lado e de outro.
Temos, no nosso blogue, alguns grandes humoristas da guerra.
Já aqui publicámos textos de antologia, como os do Jorge Cabral ("Cabral só há um, o de Missirá, e mais nemhum", diria o Corco Só, mítico guerrilheiro, morto em combate, comandante da base - barraca... - de Madina / Belel, um dos raros comandantes fulas do PAIGC, que deixava papéis nas árvores do Cuor, em 1969, com ameaças de morte ao nosso camarada Beja Santos)...
Obrigado, Miguel, obrigado, António, pelos vossos dois cêntimos para este novo dossiê...
Há mais malta disposta a dar mais uns tantos cêntimos para este peditório... É pouco ? Não, é muito, é de gente generosa e solidária....
Que não nos falte, Miguel, o tempo e a pachorra.
Ah!, já me ia esquecendo de te dizer: aprecio a tua honestidade intelectual... De facto, contabilizaste apenas (!) 408 missões (completas e bem sucedidas).