segunda-feira, 31 de agosto de 2009

VOO 1154 CANTORIAS NO BAR.


José Leal
Fur.Mil. PA Tete
Caminha






O bar da Base era o refúgio dos militares quando não havia serviço.
Normalmente juntavam-se aí depois das 6 da tarde, quando já era noite.
Ali carpiam as suas mágoas, abafadas com grandes litradas
O bar servia para ler o correio que vinha da metrópole…
de cerveja ou “tricofaite” (vinho tinto misturado com” seven up”). A saudade da família e dos amigos, o isolamento, o clima de guerra, tornavam o bar, centro fulcral do lazer dos “aviadores”.



Mas também servia para as patuscadas e para o convívio diário…


O Zé passava ali muito do seu tempo livre. Pratadas de camarão acompanhadas de “bazucas” fresquinhas, eram um excelente aperitivo para se falar dos incidentes do dia e da política e futebol metropolitanos. Também ali se jogava à lerpa, se esperava o correio e se liam os jornais vindos de Lisboa. O “Diário Popular”, “A Bola”, o “Jornal do Fundão” e o “Notícias da Amadora”, que apareciam com três dias de atraso e eram tragados letra a letra. Era também no bar, que ao fim da noite, quando os níveis etílicos já eram elevados, se discutia, tocava viola e cantava.
O Zé com uma consciência política já bem cimentada pela participação nos Congressos da Oposição Democrática, aproveitava para pôr cá para fora, a repulsa que lhe causava aquela guerra injusta. “Não há machado que corte a raiz ao pensamento”, de Manuel Freire, “Recuso-me”, de Luís Cília ou “os Vampiros” de Zeca Afonso, eram temas cantados diariamente. Juntavam-se a estes, canções do “Cancioneiro do Niassa”, que com letras de autores anónimos associadas a músicas conhecidas, eram uma crítica feroz à guerra, à boa vida dos chefes militares e aos problemas vividos pelos soldados no palco das operações. É o exemplo da canção seguinte, que o Águeda cantava em estilo fado, acompanhado à viola pelo Ferreira e deixava a lágrima a cair pelo canto do olho, obrigando a mais uma rodada de “bazucas”.
António que levaram para a guerra
Lindo pombo correio voador
Para mandar notícias para a terra
Para sua mãezinha e seu amor

Mãezinha fui ferido na trincheira
Meu pulso direito mal escreve
Tenho um pombo correio a meu lado
Que te levará o luto muito em breve

Que horror vai no campo de batalha
Nossos camaradas a tombar
São corpos trespassados pelas metralhas
Que caem p’ra não mais se levantarem

Mãezinha como vai a minha noiva
Como vai essa pura donzela
Que case mas que guarde uma saudade
Daquele que morreu a pensar nela

Mas todo este “relambório” para dizer que a vida no bar era sempre agitada, com as emoções a fluírem à flor da pele e ao mais pequeno “desencontro”, havia “milandro” (confusão).

Nesta altura o Pedreiras ainda alinhava nas festas…

O chefe do bar era o Pedreiras, aí para os 40 de idade, 2 metros de altura, 100 quilos de peso. Por algum motivo lhe chamavam “monstro”. O Zé não simpatizava com ele por ser demasiado militarista e ele retribuía, não gostando do Zé. Como homem da “situação” (defensor acérrimo do “Regime”) afinava e de que maneira quando o Zé cantava em tom elevado as canções revolucionárias.
Certa noite achou que o Zé não podia cantar alto e ameaçou que se continuasse mandava fechar o bar. O Zé tivera um dia bastante cansativo, ainda por cima com a notícia desagradável de um amigo morto, que se julga abatido em pleno ar. Para evitar conflitos, foi sentar-se na esplanada da parte de fora e não ligou à “investida”, continuando a cantar:

Recuso-me ao silêncio e à mordaça
Embora a minha voz de nada valha
Tenho plena consciência
Que havemos de vencer esta batalha

Pedreiras continua ao rubro e da parte de dentro do bar, enquanto fecha a porta, atira para o ar “ grande malcriado, ou te calas ou parto-te os dentes... e vou participar de ti”. O Zé, apesar de mais embriagado que o costume, sentia-se bem. O álcool fazia-o esquecer as saudades e o amigo perdido, mas as palavras do Pedreiras encheram-no de revolta e enquanto se dirigia para a porta do bar já fechada, vociferou aos gritos: “Abre a porta, meu cabrão, meu paneleirote, meu cobarde... anda-me partir os dentes, se és capaz...” Como não teve resposta, foi andando a cambalear em direcção ao quarto, que


Rodrigues, o mainato do bar

ficava ali a 50 metros e voltou logo de seguida de Walter (pistola de guerra) na mão. Bate à portado bar e como ninguém a abre, dá um murro de mão fechada, no vidro martelado. Com o pulso a sangrar e cheio de cortes, entra no bar e puxa a corrediça da arma atrás, colocando uma bala na câmara. O Pedreiras ao ver a cena e o sinal de desespero do Zé, foge por um pequeno postigo que dá para o exterior. Como foi possível um corpo daqueles, passar por um buraco tão pequeno? Mas foi... O Zé, depois de “mamar” mais uma “bazuca”, acalmou e foi-se deitar.
Ao outro dia não se falava noutra coisa, se não do incidente da noite anterior. O Pedreiras participou do Zé. Passados dois dias, o Comandante da Base, homem experiente e inteligente, que também não gostava muito do Pedreiras, chamou os dois ao seu gabinete e leu em voz alta, o despacho que tinha aposto na participação:” proibir alguém de cantar alto num bar, ainda por cima numa unidade isolada da Força Aérea, como é o caso, parece-me no mínimo ridículo, pois o bar é o local onde habitualmente se fala alto. De futuro, problemas destes, devem ser resolvidos entre os intervenientes, que são militares e adultos e não crianças de escola”.
- É tudo meus senhores, podem sair, despede-se o Comandante.
Pedreiras e Zé, saem mudos do gabinete. Pedreiras vai arrasado com as palavras do Comandante. Zé sai satisfeito e apesar de lhe apetecer sorrir, não o faz. O que é certo é que continuou a cantar e o Pedreiras nunca mais se meteu com ele.
Uma semana passada, o Comandante como “castigo”, propõe ao Zé uma semana de férias na Beira.
José Leal.
VB:Mais um saudoso e bonito "escrito" do Zé Leal.
Aproveitamos para informar que o este nosso companheiro é o editor do recente e bonito espaço dedicado ao ab7- Tete www.ab7tete.ning.com