sábado, 29 de outubro de 2011

Voo 2543 OS NOSSOS HISTÓRICOS AVIADORES,ANTÓNIO LOBATO.


DIAS DE CORAGEM E AMIZADE

Nuno Tiago Pinto ouviu 50 testemunhos que fazem
parte deste livro e descreve os momentos maisdramáticos das suas experiências nos cenáriosda guerra colonial – Angola, Guiné e Moçambique.Relatos impressionantes, na primeira pessoa, decoragem e de amizade, de medo, heroísmo,desespero, de soldados, médicos, enfermeiras quecombateram em nome da pátria.









António Lobato
Maj.Pil.Av.
Algueirão - Sintra



Nunca Tinha saído de Portugal.Quando começaram a pedir voluntários para a Guiné , ofereci-me. Estávamos em 1961.Cheguei lá a 26 de Julho e não estava à espera do que lá fui encontrar. Depois de uma viagem de 11 horas, com paragem em Las Palmas, o avião fez escala em Bissalanca para me largar e a outro colega, antes de seguir para Cabo Verde. Na descida comecei a sentir um calor enorme e cheguei a pensar que o avião ia arder. Mas não. Era do clima. Lá em baixo o aeroporto era um bocado de asfalto no meio de capim com dois metros de altura. Estava escuro como breu e, além de uma casinha com uma suposta torre, não havia mais nada. Nem sequer aviões.
Meia hora depois de chegarmos lá apareceu um rapaz, radiotelegrafista, que só lá estava porque de vez em quando passavam por ali os P2V5 que saiam do Sal. Ele sabia que íamos chegar e foi buscar-nos num jipe.
Apresentou-se e levou-nos para Bissau. Só havia um hotel na cidade – que estava cheio, tal como todas as pensões porque o pessoal tinha saído todo do mato e queria ir embora. Acabamos por dormir num colchão no chão do quarto dele. No outro dia corremos a cidade à procura de outro sitio e não conseguimos nada.

À hora do almoço sentamo-nos no café Portugal a beber uma cerveja. Foi a primeira vez que vi uma de litro e meio. Estávamos a conversar quando um senhor que estava na mesa do lado nos interrompeu e perguntou se éramos da Força Aérea.”Ouvi a vossa conversa, estão aflitos?

”Quando acabarem de beber têm disponibilidade para vir comigo?”Dissemos que sim e seguimo-lo em direcção a uma vivenda ao cimo da avenida principal, onde ele nos explicou:”Sou reitor do liceu, mas vou-me embora para a semana. Já mandei a família para Portugal.”Deu-nos uma chave a cada um e foi assim que arranjamos alojamento. Ficamos ali uns dois ou três meses.
Depois fomos apresentar-nos ao palácio do governador. Como todas as semanas havia um avião para transportar as pessoas que queriam vir embora e não havia controlo, pediram-nos para tomar conta dos embarques. E assim foi. Havia quem nos oferecesse dinheiro para passar à frente das listas.
Recusávamos sempre e no final dos embarques íamos levar um saco cheio de notas ao palácio. Aquilo funcionou assim.
Passados três ou quatro meses lá apareceram dois aviões empacotados no porto de Bissau.
Como, entretanto, chegados dois mecânicos, combinamos ir buscar um para montar só com as ferramentas que eles tinham na mala. No final, faltava uma chave grande para montar o hélice. Fomos ás oficinas navais e o mecânico fez-lhes o desenho do que precisava e eles fizeram uma. Foi assim que começamos a voar para conhecer o território, porque as cartas que tínhamos não tinham cores.
Fomos nós que as colorimos com lápis.
Na época não tinha noção de que aquela seria uma guerra prolongada. Começou suavemente e foi aumentando. A 22 de Maio de 1963 sai para a operação Ilha do Como. Supostamente nem devia ter ido. Tinha chegado de Cabo Verde na tarde do dia anterior e entrei na sala de operações quando estava a haver um briefing. Como faltava um piloto ofereci-me para ir no lugar dele. Estava a um mês de acabar a minha comissão.
Ao chegar ao objectivo senti qualquer coisa no avião. Devo ter sido atingido por uma bala. Disse ao meu asa que ia sair dali e pedi-lhe que se pusesse debaixo de mim para ver se havia alguma coisa na zona do trem se aterragem. Foi o que ele fez. Mas quando temos outro avião por cima é preciso termos cuidado para não sermos sugados. Não sei se foi por falta de experiência, distracção ou apenas por estar a olhar para cima, mas, quando dei por isso, ele estava a passar-me à frente, encostado ao motor. O avião começou a tremer e tive que o desligar. Ainda lhe dei dois ou três gritos para que endireitasse o avião mas ele foi a pique e lá ficou.
Vi uma clareira e não me ejectei. Achei que era capaz de lá meter o avião. Aquilo era um campo de arroz e ao aterrar as saliências das metralhadoras e dos rockets encaixaram nos sulcos e as duas asas saltaram como se fossem arrancadas à mão . A fuselagem deu duas ou três cambalhotas e saí de lá ileso. Só tinha o relógio esmagado. Olhei à volta e vi um grupo de indígenas a uns 50 metros a olhar para mim, espantados. Fui direito a eles. Estavam todos de catanas na mão. Sabia que Catió era numa determinada direcção e perguntei se algum me podia indicar o caminho que, quando lá chegasse, lhes pagava.
No topo da clareira havia uma ladeia escondida. Caminhamos para lá a conversar.
Mas antes de chegarmos, levei uma catanada que me abriu a cabeça ao meio.
Sem dizerem mais nada caíram todos em cima de mim. Arranjei forças não sei como e consegui fugir para o mato. Ainda estive uns 10 minutos escondido.
Atei um lenço à cabeça para tirar o sangue dos olhos e fiquei à espera. Houve um que apareceu. Ficámos a olhar um para o outro. Eu peguei na minha faca de mato e levantei-a. Ele disse:”Dá a faca”Nestas alturas há alguma coisa que nos diz como devemos decidir. Sei que a virei e atirei-a. Ele deu um grito e lá veio a outra rapaziada toda. Saímos do meio das lianas e voltaram a dar-me uma serie de catanadas, uma delas nas costas. Ainda estão marcadas. Depois levaram-me para aldeia. Pelo caminho foram-me tirando a roupa, anéis, o fio que trazia ao pescoço. Estavam a preparar-se para me linchar quando chegaram dois guerrilheiros. Foi a minha sorte.
Mandaram-me sentar e perguntaram-me o que se tinha passado. Depois disseram-me para descansar porque íamos partir à noite. Antes quiseram saber se tinha fome. Mandaram os aldeões subir a uma mangueira e eles começaram a atirá-las cá para baixo. Nunca comi tantas mangas na vida. Foram dezenas. Tinha perdido imenso sangue. Logo depois, adormeci. Só acordei à noite, quando me chamaram. Andámos a pé uma semana até chegarmos à região onde estava o Nino Vieira, que era o comandante da zona sul. Ele disse-me que tinha tido sorte: a ordem do Amílcar Cabral para fazer prisioneiros só tinha chegado há 15 dias. De qualquer forma tinha poder para me fazer o que quisesse.
Perguntou-me:
“Tens família?”
“Tenho”
“Queres escrever-lhes uma carta?”
“Para quê? Isto nunca mais lá chega.”
“Como quiseres.”

Depois tirou um bocado de papel e uma caneta e deu-mas.
A minha mulher tinha vindo para a Guiné em 1962 e resolvi escrever-lhe umas oito linhas a dizer-lhe:”Não te preocupes que qualquer dia volto.”E um mês depois ela recebeu-a.Por volta das 22h00,um guerrilheiro entrou-lhe em casa.em Bissau, cansadíssimo. Perguntou-lhe se tinha leite, bebeu uns dois litros e entregou-lhe a carta.
Nessa altura já devia de estar na Guiné-Conacry.Fui num barco que eles apanharam à Casa do Comércio,o Bandim; para Vitória. Estava lá um curandeiro que decidiu tratar-me. Tirou-me o lenço e lavou-me com álcool ou qualquer coisa parecida porque isto nunca mais sangrou.Nas costas ainda tinha um golpe aberto por uma catanada. Disse-me:”Vamos coser isto”Deitou-me numa marquesa e deu-me uma garrafa de vinho para custar menos. Bebi. Era bom,português.Ele lá me coseu com uma agulha de coser sacos.
Chega-se a um ponto na dor em que em já não se sente nada, passa-se para o outro lado. O certo é que aquilo resultou. Nem sequer infectou.

Levaram-me para Conacry,onde chegamos a um domingo. Estava tudo fechado.Passei a noite numa cela imunda do comissário da policia e só no dia seguinte me foram buscar para responder a umas perguntas. Queriam que fosse à rádio Argel dizer que aquela era uma guerra injusta e não sei que mais. Prometeram-me que ia para um país de Leste e tudo.Dissequenão.Identifiquei-me e pronto. Fiquei ali mais 15 dias até me meterem num carro e arrancarmos para a prisão de Kindia,150 Km para o interior,onde fiquei os seis anos seguintes.



Estava numa cela de três metros por dois. Sozinho. Comecei logo a planear uma fuga. Anos depois, graças a um guineense, cheguei a ter três ferros da grade cortados. Ele era funcionário do tesouro antes da independência e depois continuou nas mesmas funções. Só que em vez de mandar o dinheiro para as contas da Guiné,em França, mandava para a dele. Ele tinha estado no Brasil e falava português.Odiava aquela gente toda. Através da mulher, que ia visitá-lo de 15 em 15 dias,ofereceu-se para enviar notícias para cá. Conseguiu passar-me papel e lápis por baixo da porta e eu escrevi. As cartas iam para uma irmã dele na Guiana Francesa e dai para Portugal.
Acabei por receber um livro que pedi à minha mulher,fiz um código com base nele – uma página era uma letra – e continuei a mandar informações. A mulher trouxe-me uma serra de cortar ferro e estive meses a cortar as barras, à noite, até ser apanhado.

Aquilo tinha 400 prisioneiros de delito comum, que faziam trabalhos forçados todos os dias. Nunca lá entrou um médico. Eu era o único branco.


Ao fim de dois anos comecei a ir ao recreio por uma hora, mas sozinho. Nunca me bateram, nem mesmo quando me apanharam a tentar fugir. Insultaram-me e mais nada. Até quando as nossas tropas entraram na GuinéConacry foi lá um ministro que mandou abrir a porta, mas só para me insultar. A certa altura chegou um soldado português que, ao fim de um ano e meio foi libertado através da Cruz Vermelha. Quando voltou a Portugal disse à minha mulher que nunca mais de lá saia porque dizia que, quando isso acontecesse, os bombardeava. Não eranada,mas ele disse isso.

Depois chegaram mais dois, que ficaram comigo um ano.Nos primeiros tempos não podíamos falar. Eles estavam numa cela e eu noutra. Fazíamos sinais. Quando passaram a deixar-nos ir juntos ao recreio comecei a planear uma fuga.Isto ao fim de seis anos. Começámos a ver que havia certas rotinas. Os guardas deixavam a cela aberta para um pátio e à noite havia um grupo que ao dar-nos o prato de arroz nem olhava lá para dentro. Um dia não voltámos à cela. Entrámos para dentro de um depósito de água e ficámos à espera da hora da prece – quando também começava a anoitecer.
Nessa altura dali para fora e oito dias pelo mato a alimentar-nos de tudo o que aparecia. Uma noite, tivemos que andar um bocado pela estrada porque não tínhamos outra hipótese. Meia dúzia de depois apareceram uns enormes, sem armas, todos vestidos de branco, de saia até aos pés. Eram Fulas.

Portuguesi?”
“Não.”
Ahhh portuguesi.Vamos embora.”
Não.Não.”
Ahh portuguesi,está tudo bem.”

Chegamos a uma aldeia e nem se preocuparam connosco.Foram rezar e as mulheres encheram umas cabaças de arroz e carne. Chamaram-nos para comer e nós lá fomos. Depois levaram-nos para uma cidade onde havia polícia. O militar perguntou-nos:”Vocês fugiram,tudo bem é esse o dever de um prisioneiro. Não há problema.Mas vão ter de me dizer como conseguiram.”Respondi-lhe que era “mezinha de branco”.Até hoje não sabem como.

Quando à prisão,tinha o director na minha cela.Estava ali porque se eu não aparecesse ele tomava o meu lugar.Era assim.Passados uns dias os homens do PAIGC levaram-nos paraConacry,onde estavam mais de nossos.Se não tivéssemos tentado escapar se calhar não tínhamos ido para lá e acabávamos por não ser libertados:A Operação Mar Verde foi nesse ano.


A altas horas da noite começamos a ouvir tiroteio que se afastava e aproximava. A dada altura caiu uma bujarda em cima da prisão. Deitei-me encostado à parede até alguém abrir um rombo na parede e gritar:”Lobato”.Era o tenente fuzileiro Cunha e Silva. O instinto fica tão apurado que parece vemos e advínhamos tudo .Perguntou-me pelos outros que estavam na outra ponta da prisão. Foram buscá-los e direito aos barcos.



Quando cheguei a Portugal só pude ver a família passado oito dias. Fui levado para Caxias e fiquei guardado por dois pides. Não se podia divulgar que tínhamos estado em território -Conacry. Antes de ir à televisão tive de assinar um papel a comprometer-me a dizer que tínhamos fugido. Os ministros foram ver a gravação e depois de confirmarem que estava tudo bem é que me deixaram ver a minha mulher. Tinham passado mais de sete anos.

VB: Bom Dia.
Depois de reposta a anomalia que condicionou o tráfego nesta base,mais uma vez o nosso pedido de desculpa pelo facto.