Maria Arminda
Ten.Enfª.Paraqª.Setúbal
Ten.Enfª.Paraqª.Setúbal
MISSÃO À ÍNDIA
Foi no dia 18 de Dezembro, de 1961 que
a Índia foi invadida pelas tropas da União Indiana no governo do seu
primeiro-ministro, o Pandita Nehru, como à data se dizia.
Hoje vou recuar no tempo e relembrar
porque tal facto fez parte da minha vivência cheia de emoções, que não se
apagaram da minha memória.
Prestava serviço em Angola, Luanda,
como enfermeira pára-quedista, onde tinha sido colocada; tinha ali chegado a 12
de Outubro de 1961 na companhia das minhas colegas, Maria da Nazaré e Maria
Zulmira – já falecidas - chegando a Maria de Lourdes, também apelidada de
Lurdinhas, pelo seu aspecto físico mais franzino, cerca de duas semanas depois.
Terá sido entre os dias catorze a
dezasseis de Dezembro que nos soou que se encontrava de prevenção uma companhia
de pára-quedistas para a hipótese de ser necessário enviá-la para o Estado da
Índia Portuguesa; havia notícias de uma possível invasão daquele território por
parte dos Indianos, que estavam a concentrar as suas tropas nas nossas
fronteiras. A 2ª companhia, comandada à época, pelo
Cap. pára-quedista Heitor Almendra, a que estava
destinada essa missão, partiria por via aérea até à Beira, através do canal de
Moçambique, por ser geograficamente mais próximo desse nosso território e haver
habitualmente uma ligação entre Goa e Moçambique assegurada pelos TAIP
(Transportes Aéreos da Índia Portuguesa).
Dissemos que se fosse necessário
também nos oferecíamos para ir; tínhamos a consciência de que por certo não
poderíamos ir todas, dado o trabalho a desenvolver em Luanda. Trabalhávamos nos
postos de socorros das companhias, íamos em missões de vacinação às tropas
estacionadas na Base Aérea do Negage e outros locais, dávamos apoio ao bloco
operatório do hospital militar e na Direcção do serviço de Saúde da Força
Aérea, onde também eram tratadas as famílias dos militares e pessoal civil.
Acresce ainda que assegurávamos o acompanhamento de feridos e doentes, nas
denominadas “Evacuações Aéreas” entre Luanda e Lisboa.
Nessa manhã tratámos da esposa do
Senhor Cor. Magro, que a acompanhava, e com quem desabafámos sobre a hipótese
da nossa ida à Índia, ao que o mesmo respondeu com ar de troça: “Falam assim
mas sabem que não vão, porque se tivessem que ir, se calhar não quereriam”. É
claro que estava a brincar connosco pois, além de conhecer o nosso empenho, era
acima de tudo nosso amigo. A conversa ficou por ali e combinou-se que à noite,
eles viriam a nossa casa, para fazermos o tratamento à senhora.
O dia passou-se tranquilamente e não
mais se ouviu falar da saída dos Páras, nem do seu embarque. Após o jantar a
Nazaré e eu fomos chamadas à 2ª companhia (sedeada em Belo Horizonte), a mesma
que estava de prevenção, onde alguns militares apresentavam sintomas de paludismo.
Um avião DC-6 da Força Aérea estava a
essa hora prestes a partir para Lisboa, com passageiros sem feridos ou doentes,
pelo que nenhuma de nós previa viajar nesse voo. Acontece que um rádio chegado
pouco tempo antes ao comando da Região Aérea, tinha entretanto dado instruções
para embarcarmos com urgência nesse transporte a Nazaré e eu, ficando atrasada
a hora de saída do DC-6 até ao nosso embarque.
O capitão pára-quedista Jerónimo
Gonçalves dirigiu-se a nossa casa e tendo encontrado a Zulmira e a Lurdinhas,
disse-lhes que “tínhamos que embarcar imediatamente no avião que aguardava a
nossa chegada para partir” e informou-as de que “iríamos para a Índia”. Como
ainda não tínhamos chegado o oficial saiu ao nosso encontro, enquanto as duas
preparavam as nossas bagagens com algumas peças de roupa, umas a mais e outras
a menos.
Daí a pouco chegámos nós nas calmas,
muito longe de imaginar o que se estava a passar; ao vermos a Zulmira,
excitadíssima, gritar-nos do alto da janela da pensão da dona Maximina, onde
habitávamos, “despachem-se e subam depressa que têm que ir para a Índia”.
Começámos a rir, pensando que elas nos estavam a pregar uma partida. Perante as
malas de viagem prontas e as palavras do oficial é que ficámos convencidas e,
tal como estávamos vestidas, despedimo-nos apressadamente sem tempo sequer para
ver as roupas que nos tinham emalado, para um clima que não conhecíamos.
Na saída deparámo-nos com o senhor
Coronel Magro, que vinha com a esposa levar a injecção; vendo todo aquele
aparato e a nossa pressa interpelou-nos, acabando por saber naquele momento o
nosso destino. Escusado será dizer que o senhor ficou perplexo, visto ser um
dos comandantes da Região Aérea, mas como o rádio tinha chegado fora do horário
normal, não tinha dele conhecimento. Despediu-se de nós, desejando-nos que a
missão decorresse bem e ainda brincou acerca da conversa que tínhamos tido de
manhã.
A pressa foi tanta que, chegadas à
placa, entregámos as malas ao oficial responsável pela carga de embarque de
passageiros e muito lestas nos vimos dentro do avião, sem que o restante
pessoal se apercebesse. Foi o capº. Jerónimo Gonçalves quem comunicou ao Senhor
General Resende que já estávamos a bordo, a aguardar pelos restantes
passageiros; O Gen. Resende era o responsável máximo da Força Aérea em Angola e
possivelmente teria recebido a comunicação directa de Lisboa, tendo-se
deslocado propositadamente ao aeroporto, para se despedir de nós. Pedimos
desculpa pelo lapso e despedimo-nos do Senhor General, com certa estranheza,
dado o insólito da situação.
No decurso da viagem para Lisboa
comentámos entre nós, que não levávamos nenhum dinheiro nem roupa quente. Íamos
com um vestido leve e de manga curta, dado que naquela data em Angola era verão
e na metrópole inverno. Depois de quase vinte horas de viagem, com escalas em
S. Tomé e na Guiné, chegámos ao aeroporto da Portela cerca das dezassete horas,
com um dia gélido, de apenas quatro graus, segundo nos disseram.
Esperavam-nos o Senhor Coronel Kaúlza
de Arriaga, Secretário de Estado da Aeronáutica e esposa a Senhora Dona Mª do
Carmo Arriaga. Acompanhavam-no o seu chefe de gabinete, Tenente-coronel Troni e
um dos oficiais às ordens, o Alferes Francisco Pinto Balsemão; o outro era o
Alferes Francisco Vanzeller, que nós também já conhecíamos.
Pensávamos que teríamos tempo de
arranjar alguma roupa mais apropriada, mas enganámo-nos. Fomos de imediato com
o alferes Balsemão à Embaixada do Paquistão, para tratar do passaporte e do
visto, sendo entretanto informadas de que iríamos para Carachi.
Um funcionário da Embaixada pediu-me
mesmo se eu não me importava de levar uma encomenda com um relógio de pulso, um
presente para a mulher - que se encontrava na parte oriental do Paquistão – a
quem eu podia enviar a encomenda directamente do aeroporto de Carachi. Aceitei
fazer esse favor ao senhor e fiquei com a encomenda.
Terminadas estas formalidades o
alferes levou-nos de seguida para o local onde íamos jantar e entregou-me um
envelope com dólares, para as nossas despesas, com a recomendação de que não
levássemos nada que nos pudesse identificar como militares e que estivéssemos
de novo no aeroporto às vinte e uma horas, para seguirmos viagem a bordo de um
avião da TAP (um Super Constellation).
Após essas diligências dirigimo-nos ao
Lar das enfermeiras do Hospital de Santa Maria, onde tínhamos trabalhado, e de
onde tínhamos saído poucos meses antes. Ali jantámos, revemos colegas,
arranjámos roupa adequada para a época e aproveitámos para telefonar à família,
sem lhes darmos conta do porquê da nossa vinda e do destino seguinte.
Inventámos para todos, que tínhamos vindo trazer doentes, mas por sermos poucas
e haver necessidade de voltar, partiríamos de novo após o jantar, não dando
tempo para uma visita. A minha família vivia em Setúbal mas, morando a da
Nazaré na capital, mesmo assim ela não os foi visitar, tal “o secretismo”.
Todos acreditaram, mas umas amigas
mais próximas fizeram questão de nos levar ao aeroporto e aí se despedirem.
Esperava-nos o Ten-coronel Troni, que ao ver as acompanhantes disse “que já não
embarcávamos, mas que tínhamos que ir com ele”. Não percebemos na altura essa
mudança brusca de procedimento. Afinal fomos para ali ao lado, ao aeroporto
militar de Figo Maduro. Foi a maneira das nossas amigas regressaram sem nós,
não tendo desconfiado de nada.
Fomos então informadas do conteúdo da
missão. Íamos para o Paquistão Ocidental para a cidade de Carachi, onde já se
encontravam há alguns dias as nossas colegas a Mª do Céu e Mª Ivone, que
estavam muito cansadas; nós íamos revezá-las no seu trabalho, como reforço, no
acompanhamento de mulheres e crianças, famílias de militares a prestar serviço
nesse território, que estavam a ser retiradas, de Goa, através da ponte aérea
assegurada pelos TAIP e posteriormente evacuadas para Lisboa pelos aviões da
TAP. Estavam nessa missão o chefe da mesma, um representante do nosso
Ministério do Ultramar, o Dr. Espinheira, o Major médico da Força Aérea, Dr.
Fernandes Tender e o sº. Rodrigues, Relações Públicas da TAP.
O Aeródromo Base nº1 de Figo Maduro,
estava em silêncio e pouco iluminado, o que estranhámos; o avião da TAP
mantinha-se ali, imobilizado, parecendo que esperava por algo para ser posto em
marcha e rolar para a pista. Pouco depois apareceu o Chefe do Estado Maior da
Força Aérea, General Mira Delgado, que nos veio desejar boa viagem; ficámos um
pouco curiosas e apreensivas perante tanta despedida e votos para que tudo
corresse pelo melhor.
Colocaram-nos na zona da 1ª classe do
avião, comunicando-nos que qualquer pergunta do pessoal de bordo sobre a nossa
presença deveria ser remetida para o piloto, comandante Magro (que viemos a
saber posteriormente ser irmão do Coronel que estava em Luanda). Fomos
informadas de que só sairíamos, definitivamente, em Carachi.
Passado pouco tempo sentaram-se atrás
de nós cinco ou seis homens trajando à civil; soubemos mais tarde tratar-se de
oficiais e sargentos do nosso exército, da arma de engenharia, enviados à
pressa nessa missão. Ouvimos o ruído de um carro, que pude divisar da janela do
avião, um carro grande, com capota de lona vi encostar ao avião, não tendo
conseguido detectar mais pormenores. Passado pouco tempo arrancámos para a placa
do estacionamento do aeroporto, para a entrada do pessoal de cabine, duas
hospedeiras e um comissário de bordo que, penso eu, só nesse momento souberam
para onde iam voar, porque nos perguntaram pelos bilhetes; respondi-lhes que
perguntassem ao comandante o avião.
Por volta das onze da noite locais
descolámos rumo ao nosso destino. Nessa altura, disse à Nazaré: “Com todo este
aparato, achas que nos vai acontecer alguma coisa? Uma das hospedeiras deu-nos
cobertores para nos taparmos e dois banquinhos para descanso das pernas, pois a
viagem ia ser longa e nós, poucas horas antes, tínhamos chegado dum local bem
distante. Dormimos tranquilamente algum tempo, até porque estávamos muito
cansadas e havia que recuperar forças para o que viesse.
Recordo-me que quando acordei para não
mais dormir até à chegada no outro dia já de noite, talvez por volta das vinte
horas locais, ter sobrevoado as costas da Itália, Grécia, Turquia, as Ilhas de
Rodes e Chipre, até fazermos a primeira paragem no Líbano, na cidade de Beirute,
onde almoçámos e o avião foi reabastecido.
Toda aquela vista aérea me encantou,
pois foi feita com condições atmosféricas favoráveis e o mar mediterrâneo por
baixo de nós, de tons de verde e azul, fascinou-me. A aproximação ao Líbano mostrava-nos
uma cidade que me parecia ser linda. Não deu na ida para a apreciarmos, mas na
vinda pudemos visitá-la. Ao sairmos para o restaurante reparámos então no avião
seguiam umas dezenas de rapazes, que tinham em comum peças de vestuário iguais:
nuns, eram as camisas, noutros as gravatas, ou sapatos e até as meias. Não nos
foi difícil de adivinhar que se tratava de militares.
A vida é um misto de acasos e emoções.
Aconteceu que na nossa mesa se sentou, entre outros, um jovem que na minha
frente me olhava, parecendo rebuscar na sua memória a minha fisionomia, para
chegar à conclusão de onde me conhecia. Porém, eu com a minha memória de
elefante, que afirmam que tenho, reconheci-o de imediato. Comíamos em silêncio,
quando o rapaz mete conversa e me diz conhecer-me, embora não se lembre donde.
Sorri nessa altura e perguntei-lhe se não tinha uma cicatriz, por cima do ombro
direito, respondendo-me afirmativamente, muito espantado. De repente, exclama
“Srª enfermeira Lopes Pereira, o que faz aqui no meio de nós?” ao que lhe
respondi, que ia no mesmo passeio turístico que ele. Ficou espantado e de
repente começou a falar do que os jornais tinham noticiado sobre as primeiras
mulheres pára-quedistas e eu pedi-lhe que se calasse. Tinha estado internado no
meu serviço no Hospital de Santa Maria, meses antes de ir para a tropa e por
esse facto, estava muito presente na minha memória.
Despedi-me dele em Carachi; continuou
viagem para Goa, ficou prisioneiro e nunca mais o vi. Prestes a chegarmos ao
Paquistão o comandante mandou avisar-me que possivelmente teria que seguir
directamente para Goa e assim sendo, não nos deixava em Carachi. Eu como mais
antiga, era a interlocutora, respondendo que as ordens que recebera eram para
ficar ali e não noutro lado.
Não sabíamos o que se estava a passar mas
o comandante, via rádio, sabia que o assalto ao aeroporto podia estar eminente.
A invasão já tinha começado e o avião dos TAIP, que deveria estar em Carachi,
para fazer o transporte do material de guerra e os militares para Goa, que
connosco tinham viajado, não tinha conseguido sair, pelo que o nosso avião fez
uma paragem técnica. O pessoal saiu para comer e voltar para continuar a
viagem. Nós ficámos em Carachi e, talvez por volta da meia-noite, soubemos que
o aeroporto em Goa tinha sido bombardeado; desconhecíamos o que acontecera ao
avião e a todos os que iam a bordo, incluindo a tripulação.
Na viagem até Carachi fomos muito bem
tratadas pelo pessoal de cabine, de cujos nomes tenho pena de não me recordar.
O comissário de bordo, ao conversar connosco, contou-nos que era casado e que
esperava ser pai do primeiro filho, pois a mulher estava grávida de seis meses.
Quando se soube que o bombardeamento tinha sido no desembarque em Goa, as
palavras do comissário não me saíam do pensamento, embora estivesse preocupada
com todos os que iam naquele avião, com menos sorte que nós.
Ninguém no grupo sabia da missão, que
aquele avião ia chegar e o que transportava. Carachi era uma cidade de
espionagem intensa e estava em guerra há anos com a União Indiana, por integração
do território de Caxemira, cuja posse ambos reivindicavam. Se o governo indiano
soubesse desta missão, da ajuda e das facilidades de manobra que o governo
paquistanês nos tinha concedido, por certo nos teriam abatido, daí todo o
grande secretismo à volta deste voo.
A Mª do Céu quando viu chegar o avião
e este se imobilizou, disse ao Dr. Tender: “parece a Mª Arminda que vem ali à
janela, mas não pode ser, porque ela está, em Angola”. Foi um espanto para
todos a nossa chegada - os homens pareciam pertencer a grupos desportivos, até
transportavam alguns sacos de rede com bolas, o que eu e a Nazaré não tínhamos
visto, na paragem em Beirute e ficámos espantadas e convictas de que se tratava
de uma missão secreta.
Aquela noite foi um pesadelo, não nos
deitámos, apesar do alojamento disponibilizado ser nas instalações do
aeroporto, num piso térreo, que as várias companhias estrangeiras que nele
operavam tinham para descanso das tripulações. O nosso era da Companhia da KLM.
Apesar de muito cansadas permanecemos por ali a fim de sabermos mais algumas
informações através dos paquistaneses, porque de Lisboa ainda menos se sabia e
de Goa, nem pensar. Mais nada se soube e foi com forte angústia que por ali
fomos ficando, em alerta a novos acontecimentos.
Entretanto encontrava-se ali
estacionado outro avião da TAP que iria transportar algumas crianças e as
últimas mulheres e que aguardava partida para Lisboa; entre elas estava uma
grávida, em fim de gestação. Foi decidido que seguiriam nesse voo a Céu e a
Ivone e que ficaríamos nós, Nazaré e eu. com os restantes elementos da missão,
até chegarem ordens de Lisboa. A ansiedade que nos tomou, também tomou a
parturiente, que começou a dar sinais evidentes de que o parto podia ocorrer a
qualquer momento - o que teria acontecido, se o avião tivesse ido para o ar.
Foi de imediato acompanhada pela Mª do Céu e internada numa clínica obstétrica
local, tendo nascido uma menina. O pai, um sargento enfermeiro do exército,
foi, como todos os outros militares, feito prisioneiro e só veio a conhecê-la,
meses depois, quando da sua libertação.
No dia seguinte continuávamos sem
notícias, nem de Goa nem de Lisboa. Nessa tarde o Dr. Tender foi confrontado
com telefonemas anónimos, em que o interlocutor perguntava se ele era militar,
bem como o restante grupo. Essa ocorrência deixou-nos a todos um pouco
apreensivos, pois tínhamos sabido que algum tempo antes uma hospedeira da TWA
tinha sido assassinada. Quando o avião estava prestes a sair, o comandante foi
avisado de que deveria aguardar, porque estavam a caminho dois aviões, que
conseguiram descolar de Goa, em condições muito desfavoráveis e escapar ao
controle dos radares indianos.
Foi com grande alegria que vimos
chegar a tripulação, com o avião que nos transportara, bem como o dos TAIP, que
não tinha podido anteriormente descolar de Goa, trazendo o pessoal civil que
trabalhava no aeroporto e o director da Emissora de Goa. Com os novos
acontecimentos ficámos todos em Carachi, até a senhora ter alta; no dia vinte à
tardinha, o avião dos TAIP (ainda com marcas dos estilhaços de bombas) iniciou
a viagem de regresso, transportando-nos a nós e a todas as pessoas que tinham
conseguido fugir, as restantes mulheres e crianças e a nossa nova passageira
recém-nascida.
O avião da TAP ficou no aeroporto,
para reparação, tinha sofrido mais estilhaços que o nosso. O que nos trouxe,
pilotado pelo comandante Solano de Almeida, era um DC4, muito mais lento, um
quadrimotor a hélice, enquanto a primeira aeronave era turbo-hélice e mais
rápido. Soubemos de imediato, que seria uma viagem muito mais demorada e com
escalas pelo meio. Preocupava-nos além dos condicionalismos existentes, o
bem-estar de todos os que estavam a bordo, até porque alguns dos passageiros
estavam psicologicamente abalados. Tinham embarcado à pressa, apenas com a
roupa que traziam na altura vestida. Acima de tudo preocupava-nos a
recém-nascida e a sua mãe. Passámos desde então a assumir o papel de
enfermeiras hospedeiras, o que teve a virtude de nos trazer distraídas e
ocupadas.
Saímos na noite do dia vinte e a
primeira paragem foi na Síria, em Damasco, apenas para reabastecimento; daí
seguimos para o Líbano rumo à cidade de Beirute, onde pernoitámos, sobretudo
para descanso da tripulação, que era única para toda a viagem. Este percurso,
segundo o que os pilotos nos disseram, foi mais demorado porque o avião tinha
que subir lentamente acima dos montes da cordilheira do Líbano, que separa este
país da Síria, não sendo as condições as mais favoráveis, pelo que teve que
subir em espiral até atingir a altitude de segurança.
No dia seguinte, vinte e um à noite, descolámos
para mais um percurso; mas a paragem na cidade de Beirute tinha-me permitido
visitá-la, pois era linda e com duas zonas distintas: uma parte mais antiga, no
centro, e outra, nova, de enormes edifícios, que lhe valeu pela sua imponência
a designação da “Riviera do Oriente”.
Aterrámos em Beirute já era escuro,
com mau tempo e chuva intensa; e foi debaixo desta, que a Nazaré e eu deixámos
o hotel onde estávamos alojados e procurámos uma farmácia próxima para comprar,
material de penso a fim de tratarmos o cordão umbilical da bebé, que ainda não
tinha caído. Escusado será dizer que sem qualquer protecção e a água a entrar
no pescoço e a sair nos calcanhares, nos deixou molhadas até aos ossos, mas foi
por uma boa causa.
Aproximava-se o Natal e a cidade com
enfeites alusivos ao mesmo, com cedros e pinheiros de montanha, fascinou-me.
Actualmente e com o grau de destruição que caiu sobre a mesma, a paisagem deve
ser muito diferente e alguns daqueles imponentes edifícios da zona moderna,
penso que foram em parte destruídos nos conflitos mais recentes, a avaliar
palas imagens televisivas que nos têm sido mostradas nos últimos anos.
Na permanência em Carachi, também fui,
mas sozinha, ao centro da cidade, tendo utilizado um riquechó, tipo lambreta
com capota de lona, onde o dono levava uma esteira. Era cerca do meio-dia e
para meu desespero, chegou a um local onde se encontravam vários veículos
iguais, mandou-me descer e apontou-me a zona para onde eu me deveria deslocar a
pé. Dito isto, puxa pela esteira e virou-se ao que julguei ser para Meca e com
os outros, ficou a fazer as suas orações.
Eu ficara num local onde se situavam
os Bancos e assim vestida à ocidental a cruzar-me com os naturais, as mulheres
de saris e lenços na cabeça, os homens de calças largas e de turbantes,
fizeram-me ter algum receio, até porque me veio ao pensamento a história da
hospedeira raptada e assassinada, anteriormente à nossa chegada.
Achei a cidade suja; uns vendedores
ambulantes nuns carros do tipo dos da venda de castanhas em Portugal,
comercializavam um caldo espécie de sopa, ao mesmo tempo que mascavam uma pasta
encarnada, que muitas vezes cuspiam para o chão, o que me enojou fortemente e
me fez retardar a saciação da fome, que começava a sentir. O trânsito era
caótico, com carros sempre a apitar no meio de veículos motorizados, onde
também passavam como meio de transporte, vacas e camelos. Uma verdadeira
babilónia, que gostei de apreciar, pela sua excentricidade.
A Nazaré aproveitou o dia para visitar
uma religiosa sua amiga, que se encontrava num convento no deserto, a uns
quilómetros de distância, tendo feito também só, o percurso num táxi que alugou
no aeroporto. Finda a visita, a religiosa com outras Irmãs, veio trazê-la na
sua viatura por receio e porque era preciso chamar da cidade, um novo
transporte.
Na véspera à tarde ela e eu já
tínhamos andado num táxi da marca Gogomobil, que era pequeníssimo, conduzido
por um homem, muito alto e com um mau aspecto, que dizia saber onde ficava o
convento, mas na realidade não sabia. Quando o vimos sair da estrada e meter
para um bairro da periferia quase sem luz, onde os homens nas soleiras das
portas e fumando os seus cachimbos, descansavam acompanhados de alguns camelos,
começamos a ter receio de prosseguir a viagem. Estava prestes a anoitecer e o
condutor por informação que outro lhe dera, dizia-nos que esse convento ficava
no meio do deserto. Pedimos-lhe então a conta e apanhamos outro carro, que ali
estava e regressámos ao aeroporto, felizmente sem mais incidentes. Esta missão
foi um misto de aventuras e emoções, mas ainda não tinha terminado.
Descolámos então de Beirute, no dia
vinte e um de manhã, desejosos de chegar a Lisboa; nesse percurso apanhámos
tanta turbulência que julgávamos que o avião ia cair. Alguns passageiros
começaram a ficar assustados e o nosso médico, o Dr. Tender, quase que
desmaiou. O susto por que passámos foi tão grande, que resolvemos fazer o
baptismo da menina, “sob condição”, fórmula existente na Igreja Católica para
situações de urgência, como morte iminente, não invalidando um baptismo, a
posteriori, por um sacerdote. A menina a partir daquele momento foi por nós,
considerada nossa afilhada.
Após muitas horas de voo, aterrámos
debaixo de chuva intensa em Palma de Maiorca, conscientes do perigo que
tínhamos corrido, sabendo dos buracos feitos pelos estilhaços na fuselagem do
avião na sequência do bombardeamento do aeroporto de Goa. Na viagem um dos
tripulantes de nome Vinhas, com quem mais tarde viemos a contactar de perto e
com quem voámos muitas vezes, porque era um navegador da Força Aérea,
mostrou-nos um estilhaço de uma das bombas lançadas, que tinha apanhado antes
de fugir.
Nessa noite pernoitámos na ilha,
de onde saímos no dia seguinte, vinte e dois, com um sol radioso, que nos
permitiu desfrutar a linda vista aérea e nos animou o espírito. Lisboa estava
mais próxima e até já sentíamos o cheiro do Natal.
No final desse dia, avistámos a nossa
capital e todos nos animámos; porém, ao sairmos do avião fiquei impressionada
com o mar de gente que aguardava a nossa chegada, na ânsia de saberem mais
notícias dos acontecimentos e de familiares que tinham sido feitos
prisioneiros. A televisão mostrou no noticiário essa chegada e a minha família
viu-me aparecer na saída e desfez as dúvidas com que tinha ficado na semana
anterior.
Quando em Portugal se soube da invasão
dos nossos territórios na Índia, a minha cunhada, tinha dito para o meu irmão:
“A tua irmã não voltou para Angola, foi de certeza para a Índia”. E tinha
razão, foi por um acaso que não fui lá parar, porque talvez não tivesse tido a
sorte de regressar.
Também em Angola, quando se soube do
sucedido e o que acontecera ao nosso avião, a Zulmira e Lurdinhas, foram nessa
tarde à igreja do Carmo mandar rezar uma missa pelas nossas almas, convencidas
que tínhamos morrido nessa ocasião. Contaram-nos depois que a Zulmira dizia
para a Lurdinhas, ”Como é que vai ser agora, que grande responsabilidade só
ficámos as duas e ainda por cima perdemos as nossas grandes amigas”,
respondendo a outra que haveriam de se arranjar; e choravam ambas copiosamente,
até que o Dr. Varela - que as acompanhara - lhes disse que ia procurar saber
mais notícias, para as tranquilizar; não era fácil, pois as notícias não
chegavam a Luanda tão rapidamente, só pela comunicação oficial, por meio dos
chamados “Rádios”.
Graças a Deus que cheguei
a esta data para recordar todas as emoções vividas nessa missão, tendo todas
nós sido condecoradas, pelo então Ministro do Ultramar, Professor Adriano
Moreira, com o Grau de Cavaleiro de Benemerência. No dia seguinte depois de
cumpridas as formalidades militares, fui à Baixa comprar um casaco por causa do
frio, mas tinha dificuldade em caminhar a direito, parecia embriagada por
efeito de tantas horas de voo.
No dia vinte e quatro passei no barco
para o outro lado do Tejo e com a chuva a cair, vi partir a última camioneta
que me levaria para Setúbal. Não podia ali ficar parada mais tempo naquele
lamaçal, isto porque o cais de embarque de Cacilhas, era de terra batida.
Felizmente apareceu um conterrâneo que estava nas mesmas condições, alugámos um
táxi e dividimos a meias a despesa e cheguei a casa. Foi o melhor presente que
tive: bater à porta dizer que era eu e não, o Pai Natal, abraçar os meus irmãos
e festejar essa quadra com a minha família. Depois do Ano Novo, apanhei com a
Nazaré outro avião, de regresso a Luanda.
Esta missão estava cumprida e foram
muitas as que realizei ao longo de quase dez anos de vida militar, a maioria
nos ex-territórios ultramarinos, de Angola, Guiné e Moçambique, entre outros.
Passados meses sobre a nossa missão,
em Maio dá-se início ao repatriamento dos prisioneiros, tendo sido para eles
uma eternidade o período em que ficaram privados da liberdade. Foram então
nomeadas para essa nova missão, a Mª Zulmira, e a Mª Ivone que rumaram para
Carachi. Porém, foi à Ivone que coube o papel de ir ao campo de prisioneiros,
como hospedeira da companhia francesa da UAT e acompanhar, entre outros, o
General Vassalo e Silva no seu regresso.
Começava outro capítulo da Nossa
História Colonial. Tínhamos perdido os territórios do Estado da Índia, a nossa
“Jóia do Império”, que tantas tormentas tinham dado aos nossos valorosos
navegadores. Confesso que tive pena, nós ficámos mais pobres, sentimentalmente
e culturalmente, foi uma perda que a muitos de nós deixou marcas, mas todos
sabemos, não ter sido possível, pelas armas, virar os acontecimentos, a nosso
favor.
“FOI O COMEÇO DO FIM, DA NOSSA
EXPANSÃO ULTRAMARINA, NO ORIENTE E EM ÁFRICA E DO FIM DO NOSSO IMPÉRIO
COLONIAL”.
Todos os anos, quando chega o dezoito
de Dezembro, recordo e revivo esta missão sem nunca ter esquecido aquela
criança, que hoje tem quarenta e nove anos. Algumas vezes perguntei à Ivone por
ela e manifestei vontade, de a procurar. Por parte da Ivone tinha havido um
contacto entre ambas, mas posteriormente, perdera-se. Nesta data, através de
felizes acasos, a minha amiga e colega enfermeira pára-quedista Rosa Serra
conseguiu o seu contacto e deu-mo. Finalmente sabia do seu paradeiro. Pude por
isso falar-lhe, dar-lhe os parabéns, por mais este aniversário, saber que se
chama Ivone Cruz, que é casada, tem uma filha e um filho e vive no Caramulo. A
sua mãe já faleceu, mas o seu pai embora idoso, ainda vive.
Assim como eu sempre digo,” A VIDA É
OS DIAS QUE NOS LEMBRAMOS”.
Espero que Deus me permita por mais
alguns, lembrar-me desta data, que para muitos, foi dolorosa e lhe possa
continuar a dar os parabéns.
Maria Arminda
Santos
Ex: Tenente Enf. Pára-Quedista
Voos de Ligação:
Aeroportos da Portela e de Goa - "Restos de colecção"
DC-6 - "Pássaro de Ferro"
(Com a devida vénia)
Voos de Ligação:
Aeroportos da Portela e de Goa - "Restos de colecção"
DC-6 - "Pássaro de Ferro"
(Com a devida vénia)
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